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■ Castelo de areia

  • Foto do escritor: Rubens Marchioni
    Rubens Marchioni
  • 19 de out. de 2022
  • 4 min de leitura

– Você vai viver em alto-mar e sobreviver da pesca, é isso? – perguntou Leonardo, a cabeça embaixo de cabelos brancos atribuídos aos muitos anos vividos na sala de aula, antes da aposentadoria minguada.

– Sim, meu sogro, estou pensando seriamente nisso – respondeu Pedro, um bibliotecário por formação, e apenas por formação, do alto dos seus quase 31 anos, aparentando uma segurança inexistente, inclusive nos livros.

– Bem, você disse que está pensando seriamente... – Leonardo foi até a janela e observou um ipê amarelo com flores desistentes.

– Sim. Estou – Pedro respondeu, com voz rouca e ajeitando a barba espessa, enquanto procurava uma posição mais adequada para o rosto de pele meio avermelhada e sobrancelhas grossas.

– E também está pensando nas implicações disso? – prosseguiu Leonardo, colocando o celular sobre o aparador de madeira. Uma chamada abusiva de telemarketing se esforçou para desviar-lhe o foco. Não desviou.

– Que implicações, seu Leonardo? Do que o senhor está falando? – respondeu, entre espantado e levemente desconfiado do que poderia vir. Pedro estava longe de entrar para o Guinness Book pelo número de conversas bem sucedidas com o próprio sogro. Sobretudo quando o tema era o trabalho.

– Me responda, Pedro, qual é a sua vivência nessa área? – perguntou, com a voz pausada, usando palavras que pareciam estudadas e mantendo os olhos semicerrados. A ausência da filha, em consulta médica para verificar o andamento da gravidez recente, junto da sogra, favorecia uma conversa um pouco mais dedicada entre os dois.

– Bom, eu sempre dou uns mergulhos na piscina do meu prédio, participei de um campeonato no colégio e vou surfar com frequência – respondeu Pedro. Talvez para testemunhar sua intimidade com a água, mostrou o tecido da bermuda preta e disse que era confeccionado para a prática da natação.


Pedro estava bem no papel de pretendente a empreendedor e poderia até ir longe na carreira de empresário. Mas ainda carecia de alguns retoques em itens essenciais. Precisava aprender como pensar com a cabeça no alto e os pés fincados no chão, local que submete pequenos e grandes sonhos a testes rigorosos e descarta muitos deles. Leonardo não perdeu o fio da meada.

– Sei... – respondeu, enquanto seus olhos percorriam as paredes da sala onde se apoiavam muitos quadros. – E que experiência você acredita ter adquirido com esses pequenos contatos com a água? – prosseguiu Leonardo.


Pedro ficou pensativo. Procurava por uma resposta, que não vinha. A ideia de ser questionado e avaliado, tudo isso o deixava desconfortável, temeroso mesmo. Naquela conversa, movimentava-se em areia movediça, tão incerta quanto a fumaça do incenso que queimava no escritório de Leonardo.

– Já pensou que a vida em alto-mar tem pouco a ver com piscina, surfe e praia? – disse Leonardo, desconfortável com o papel que exercia, tão necessário quanto impopular. Falava como se fizesse um texto, buscando o melhor resultado.

– Estou pensando em fazer parcerias com outros pescadores. Vou ganhar muito dinheiro, o senhor vai ver – disse Pedro, depois de um precioso minuto de silêncio. Parecia retomar o fôlego e voltar para o campo.

– Que tipo de parceria? – Leonardo desejava ouvir alguns detalhes sobre isso: “parcerias”.

– Posso vender iscas pra eles – essa resposta instantânea, sem edição, acabava de ficar pronta, fruto de um improviso. “É o que temos para o momento”.

– Já pensou num possível volume de vendas? Já pensou como vai pesquisar sobre a demanda, como vai falar com seu público, como vai entregar o produto...?

– Claro. Se cada barco tiver em média quatro pessoas, por dia eu vou vender tantos quilos de isca, é matemático – o jovem retrucou, tentando causar a impressão de que trabalhava com dados concretos, quem sabe obtidos através de uma cuidadosa pesquisa de mercado.

– Você disse que vai vender. Mas você já conversou com os pescadores a respeito? – insistiu Leonardo.

– E sobre o que eu teria de conversar com eles? Tenho de vender, só isso – Pedro estava levemente irritado; levemente apenas. É que aceitando o desafio de conversar com Leonardo não pensou, antes, que sem conteúdo suas afirmações poderiam ser derrubadas com um simples “como” e um “por que”.

– Já se informou se eles estão mesmo esperando que você apareça para resolver essa carência? – Leonardo demonstrava um tom provocativo na sua fala. Queria testar o genro.

– Mas é claro que existe demanda. Eles precisam de isca, não precisam? – Pedro deu um passo para trás e dois para frente, como num balé que fala de assumir novas posições para derrubar o adversário. O rótulo, no entanto, não se aplicava a Leonardo, interessado apenas em provocar reflexões um pouco mais consistentes e levar o futuro empreendedor a uma experiência profissional que nada tivesse de uma casa construída sobre a areia.

– Pode ser – disse Leonardo. E prosseguiu: – Mas é bom saber se essa carência existe, se há de fato uma demanda, conhecer a concorrência e vai por aí afora – sugeriu.

– Quem está em alto-mar precisa de isca. Então é certo que vão comprar – Pedro respondeu, tentando a qualquer custo justificar seus planos, cuja parte principal parecia bem construída sobre lugar nenhum.

– E eles já foram informados sobre isso? Já sabem que na hora de comprar iscas vão comprar de você, somente de você e de mais ninguém? Bem, eu preciso ir ao dentista, tenho hora marcada. Nos vemos depois.


Leonardo despediu-se de Pedro, deixando-o com aquelas pistas para elaborar seus pensamentos, e foi cuidar da vida. Tinha mais o que fazer.

 
 
 

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