Da prefeitura onde Helder trabalhava como Engenheiro Químico, encravada numa rua pacata e bem arborizada, era possível avistar a insistente paisagem rural bem perto dali. Ela era bordada com pequenas plantações de arroz e milho. A produção modesta e colhida sem tecnologia atendia apenas as necessidades das poucas famílias que ainda permaneciam naquele lugar aos poucos engolido pela cidade. Naquele cenário, Eliana e Helder mantinham uma pequena chácara, onde com frequência reuniam amigos em finais de semana.
Eliana desejava plantar alguns pés de pera – o alto consumo interno pedia isso. Mas não estava certa quanto à viabilidade da sua ideia. Será que aquele solo, exposto ao clima quente, contribuiria de algum jeito com a nova empreitada?
A farmacêutica foi pesquisar e descobriu o que não esperava. Sem cerimônia, foi informada de que o clima ideal para o desenvolvimento da fruta é o frio, mesmo que ele atinja os 20 graus negativos. Fora isso, devido ao tamanho da raiz, a pereira cresce em solo limoso, arejado e profundo. Nada combinava com nada, e o sabor da fruta ameaçava fugir das suas mãos.
Para começar a resolver o problema, Eliana pediu ao caseiro que pegasse o arado e revirasse um bom pedaço da terra, arejando-o o quanto possível, embora Arlindo não tivesse ainda qualquer poder de operar milagres.
– Faça buracos bem profundos, por favor.
– Dona Eliana, será que a terra vai deixar?
– Há de deixar, Arlindo, há de deixar. Eu quero muito. Depois você providencia um jeito pra manter isso aqui irrigado o tempo todo.
– Tá bom, Dona Eliana, aí tem de comprar um equipamento de irrigação.
Arlindo deixou tudo preparado: a terra havia se transformado numa superfície que por pouco não lembrava a areia da praia. Aqui e ali, buracos com uma profundidade suficiente para acolher a nova experiência agronômica de Eliana, acostumada com bulas, fórmulas e laboratórios.
O farol do carro de Helder brilhou, ao lado dos três toques da buzina que mais pareciam uma senha ou o anúncio da chegada do marido. Ele já estava no fim da pequena estrada que caminha ao lado de plantações de mata atlântica. Entraria à direita, andaria mais 50 metros e ali estaria o grande portão, com um letreiro indicando o nome da propriedade.
– Oi, querida, tudo bem por aqui? O Arlindo veio?
– Oi, amor, que bom que você chegou. Vem dar uma olhada.
– Você tem certeza de que isso vai funcionar?
– Helder, tem de funcionar. Eu já pedi pro Arlindo ver um sistema de irrigação.
– Um sistema de irrigação... Você tem ideia de quanto isso custa?
– Não tenho a menor ideia. Mas será que é tanto assim?
– Espere pra ver. Sabe quem deve saber? O Google. Vou perguntar pra ele.
Helder entrou. Passou pela geladeira e tomou um copo de água. Guardou algumas latas de cerveja, compradas no caminho. Beliscou um pouco de amendoim, uns pedacinhos de queijo provolone, que Eliana já havia deixado pronto para quando o marido chegasse. Deixou um pequeno quadro no banco da sala e pegou a cafeteira italiana – a sagrada hora do café estava lá, cheia de exigências. As pantufas de Eliana retornaram para o criado-mudo – “Que clima indeciso!” – pensou. Ter um bom desempenho em tudo o que fazia era um valor essencial para ele, o que por vezes o tornava inconveniente.
Em seguida foi para a lavanderia. Pelo jeito, ele não era o único a chegar. A criatura estava sondando o lugar onde poderia ser a sua nova residência. Devidamente instalada, sairia para caçar pequenos roedores e qualquer outro ser vivo que encontrasse e fosse digerível. Tudo bem, ela não tinha pernas, mas não se atrapalharia na hora de subir em árvores em busca da ração diária de alimentos. Seu veneno nem era dos mais estressados, e talvez nem fizesse tanto mal a qualquer ser humano. Não tinha intenção de picar ninguém, apenas queria uma convivência pacífica com as pessoas. Se as regras fossem respeitadas, procuraria ser do bem.
Helder levou um susto quando viu aquela criatura roliça, parecendo se sentir orgulhosa por exibir os aproximados dois metros de comprimento, além de um anel preto com bordas brancas, entre outros vermelhos, e mostrava a língua veloz.
“Caramba, o que é que eu faço? Nunca me envolvi com uma cobra...”. Movido pelo impulso que vinha do instinto de sobrevivência, pegou a primeira coisa que encontrou pela frente. Tentou a todo custo esguichar detergente nos olhos daquele animal que nada sabia a respeito de brincar de estátua para ser mais facilmente atingida.
Helder tentou de novo, enquanto a mão e os pés iniciaram um movimento ritmado de recuo. A cada esguicho correspondia um passo bem calculado. A ideia era alcançar um velho remo, esquecido pelo seu pai na última vez que passou um final de semana.
A cobra o mantinha sob controle, impondo contra ele a força do medo que provocava com a simples presença.
Helder chegou perto do remo. Virou com cuidado, para não dar as costas para o animal peçonhento e ameaçador. Manteve-se de frente para ela, já encostado na parede. Ainda de costas, levantou os braços na direção do remo, alcançando-o do jeito mais desajeitado – “é o que temos para o momento!”. Um olho na cobra e duas mãos no remo. O velho objeto não estava apenas dependurado. Seu pai o havia fixado com um pedaço de linha de nylon que só sairia dali com a presença de uma tesoura.
Helder fez um movimento mais brusco, era preciso agir. Zero opção além dessa.
Da cozinha, Eliana ouviu o barulho e ficou curiosa. Foi até a lavanderia, cenário de uma luta silenciosa entre homem e animal. O homem, no entanto, embora pesasse 83 quilos e era equipado com pernas, estava em desvantagem. Pudera, ele não tinha dentes pontiagudos nem injetava veneno produzido dentro do próprio corpo. Ao contrário, era sensível a qualquer substância química do gênero.
– Helder, o que está acontecendo? Que barulho foi esse?
– Psiuuuuuuuuu. Psiuuuuuuuuu. Olha ali na frente. Devagarzinho.
– Deus do céu, o que é isso? Sai daí já, Helder, sai daí já! Vamos! Rápido!
– Sim, Eliana, eu quero sair. Mas o meu suspensório enroscou num maldito gancho aqui na parede. Fique calma. Sai daqui, não espante a cobra, sai daqui, vamos, sai!
Eliana precisava optar: sair correndo, assustar a cobra e pagar por isso, ou ficar feito uma estátua e assistir tudo calada ou, por fim, tentar ajudar o marido a se livrar do maldito gancho.
A cobra tentava analisar o espaço. Mas sabia que era perigoso se descuidar quando existem humanos por perto. Humanos são perigosos para a sua raça. Bisbilhotando a sua vida, fazem lindos programas de TV. Mostram imagens colhidas sem autorização, usando sua beleza para aumentar a audiência, sem que elas recebessem um centavo para isso.
Cada um a seu modo, o casal estava paralisado. Helder insistia na sua luta pela liberdade. Até que ouviu o momento em que o suspensório se rompeu.
A chuva começou a cair. Caiu mais forte. A cobra se enfiou embaixo do armário da pia. Helder e Eliana foram buscar ajuda na cidade. Quando voltaram, o animal já havia mudado de ideia e saído para aproveitar o frescor da terra molhada.
Ele ajudou o técnico e o caseiro a vasculhar o terreno. Enquanto isso, Eliana permanecia sobre a mesa antiga, do lado de fora, onde faziam suas refeições.
– E aí, amor, encontraram alguma coisa?
– Não, nem alguma coisa nem a cobra. Olha, ela está bem embaixo da mesa! – Helder soltou uma enorme gargalhada.
Eliana pulou e fugiu para o quarto, transformado provisoriamente em seu abrigo anticobras. De rasteirinha e macacão era bem mais arriscado pular do que quando se pode contar com o conforto de um tênis para amortecer a queda.
– Danou-se, Eliana. Fiquei sabendo que cobras adoram morar em plantações de pera – ele disse, com um ar supostamente sério.
– Arlindo, pensando bem, esquece a pera. Eu gosto muito mais de paineira. Você planta umas três árvores dessas pra mim? ≡
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