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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ As aventuras de uma chef

Abrindo o pomar, a árvore exibia um festival de flores brancas que produziam um perfume suave e acolhedor como deve ser o paraíso terrestre. Ao seu lado, uma laranjeira fazia uma exposição de frutas maduras, mistura harmônica de amarelo predominante com verde, que atraiam a atenção até dos olhos mais distraídos.

Com os pés dentro de alpargatas, de bermuda e camiseta que a deixavam mais a vontade, Débora estava envolvida por todas essas sensações. O sentido da audição ficara comprometido, porque a visão e o olfato estavam com a agenda cheia e não se permitiam adiar nem mesmo um detalhe daquela experiência. Era sábado, e essas delicadezas consigo mesma eram mais do que permitidas.

Carol se aproximou, correndo e buscando os braços da mãe. Débora a acolheu. Fez um afago demorado.

– O que aconteceu, filha?

– Eu estava pensando como é o deserto.

– O deserto é um lugar onde chove bem pouquinho, quase nada. Por isso as plantas às vezes nem conseguem nascer.

– Aqui é deserto, mãe?

– Não, filha. Por que você acha que é?

– Porque aqui chove bem pouquinho. E você falou que a roseira morreu de sede.

– Não, Carol, no deserto não é como aqui. No deserto quase não tem água, não tem árvores, animais, laranjeiras como aqui.

– Onde tem deserto, mãe?

– Olha, tem em bastantes lugares do mundo. Mas aqui não é deserto, tá?

Com a cabeça povoada de imagens criadas ali mesmo e desenhando perigos imaginários, Carol voltou a brincar.

Débora apanhou algumas laranjas – pensava em fazer um pudim para o jantar. Reuniu os ingredientes necessários – uma xícara de açúcar, água quente, leite condensado, suco, raspas de laranja e ovos.

Dentre os utensílios que usaria estava uma forma de cobre, presente de amigos que também gostavam de se aventurar pela cozinha, inventando alquimias gastronômicas ou provocando acidentes que não chegavam a comprometer a ordem do universo, embora merecessem cautela.

Carol continuava brincando e também se preparava para fazer comida – um prato bem gostoso. Para ela, suas visitas chegariam a qualquer momento, e tudo devia estar pronto.

Como boa chef que era, cheia de uma experiência que só alguém com cinco anos de idade consegue acumular, a menina começou o trabalho culinário. Mas precisava de um utensílio de que não dispunha. No entanto, isso não a impediu. Sobre a penteadeira havia um objeto, usado pela mãe para fazer maquiagem, e ele bem poderia servir para a sua empreitada de não decepcionar as visitas. Tudo bem, era preciso remover o creme que estava lá dentro, o que para ela seria fácil, e o frasco estaria pronto para uso.

Carol livrou-se do moletom que comprometia movimentos que considerava precisos. Sondou o espaço ao redor e concluiu que sua mãe estava envolvida demais com a preparação do pudim e não ouviria qualquer tipo de barulho. Então ela poderia abrir a grande geladeira e pegar algumas folhas de espinafre, ingrediente indispensável para o prato que arquitetava.

A menina não era alta o suficiente para alcançar aquele legume. Mas lembrou-se de que em algum lugar existia um taco, meio esquecido pelo seu pai. Somando-se ao comprimento dos seus braços, numa verdadeira força-tarefa, o problema estaria resolvido.

Não estava.

É que junto das folhas de espinafre estavam outros objetos – coisas como o pote de vidro com café, uma garrafa de água e algumas garrafas long neck de cerveja que o casal degustava nas tardes de muito sol e ausência de chuva, com uma aparência justificada de deserto.

E eis que, numa atitude de rebeldia explícita, esses objetos gelados resolveram se jogar no chão, num gesto visivelmente suicida. O comportamento inesperado e repentino de todo aquele vidro era algo imperdoável. Sobretudo quando adotado frente a uma jovem senhora dedicada a preparar uma refeição para visitas imaginárias que, na sua fantasia infantil, chegariam apenas quando tudo estivesse devidamente pronto. Carol se atrapalhou.

Débora deixou tudo – o pudim desandaria sem qualquer impedimento –, pegou o carro, acomodou a filha acidentada e voou para o pronto socorro mais próximo. Não lidava bem com situações desse tipo. Alguns meses atrás, ela deixara de comparecer ao velório de sua melhor amiga devido à dificuldade que a fazia evitar olhar ou entrar em funerárias, cemitérios etc. Dizem por aí que isso não pegou bem. Tudo bem.

– Calma, filhinha, a gente já tá chegando. Vai ficar tudo bem, tá? Calma, a mamãe tá aqui, eu vou cuidar de você, a mamãe te ama, fica calma, tá? Vai ficar tudo bem.

A dedicação para acalmar a menina também chef de cozinha foi suficiente para que Débora se atrapalhasse diante de uma bifurcação na estrada que conhecia em detalhes, íntima de buracos e curvas surpreendentes para quem se aventurasse por ela na primeira vez.

Ela fez o retorno. Acelerou. Acalmou a filha. Tomou um gole de água, conseguindo pela primeira vez vencer o hábito característico de arrancar rótulos de embalagens. Sua mente foi tomada pelas imagens de um acidente que viveu quando criança, enquanto passava férias na casa dos avós.

Débora ajeitou o cabelo dourado, moldura para o rosto fino em pele clara, nariz reto e olhos cor de esmeralda, sob sobrancelhas quase invisíveis.

Respirou fundo. Foi mãe até onde é impossível ser mãe. Morria de medo de confirmar hipóteses levantadas por pessoas da família do marido sobre a sua falta de preparo para um bom desempenho do papel que assumiu, atuando pela primeira vez, agora como protagonista. Era preciso conquistar ou reconquistar a confiança do grupo.

No pronto socorro havia fila. Mas Débora não queria esperar – Carol era prioridade das prioridades. Furou a fila e correu para dentro com a menina nos braços. Foi advertida, mas não ouviu. “Senhora! Senhora!, a senhora não pode entrar assim, tem de passar...”

Não adiantou. Débora e Carol já estavam lá dentro. Não adiantou. Sem triagem, não seriam chamas no painel.

Agarrou pelo braço a primeira enfermeira, entregou-lhe a menina e pediu providências urgentes. “Senhora!...” “Olha aqui, você deve ser mãe, se não é, vai ser, você sabe o que eu estou sentindo, por favor, a minha filha, por favor, faça alguma coisa, o bracinho dela está sangrando, chama o médico, sei lá, faça alguma coisa, doutor, minha filha está machucada, por favor...” Entre ser mãe e falar tão corretamente como convém a uma tradutora e intérprete, Débora devia ficar com os dois.

No meio daquele tumulto que a surpreendeu, a enfermeira colocou a menina acidentada nas mãos do médico que passava pelo corredor, a caminho de resolver uma intercorrência acontecida com um paciente. Outra médica assumiu o caso – deu cinco pontos, fez os curativos de praxe, receitou um remédio e liberou a menina, que deveria ficar em repouso.

Na saída, Débora passou pela Recepção, entregou o cartão do convênio médico e pediu para que fizessem os procedimentos de praxe. Queria que a passagem delas por lá ficasse registrada. Mas também fazia questão de que as coisas fossem rápidas, muito rápidas, porque precisava passar logo pela farmácia e voltar para casa. Como é de praxe, nada foi tão rápido, porque não era permitido furar a fila. Dessa vez ela esperou.

Em casa, o marido recém-chegado do trabalho esperava por elas – de nada teria adiantado passar pelo pronto socorro – as duas estavam quase chegando.

Alívio misturado com apreensão. Também era de praxe nesses casos.

O almoço foi servido. A jovem chef se manteve num repouso com prazo curto de validade. Afinal, as visitas chegariam a qualquer momento e tudo estava por fazer.

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