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  • Foto do escritorRubens Marchioni

â–  Aprendi com a professora

A estação vivia a sua rotina. Márcio agora estava distante do laboratório e das fórmulas da Química. A temperatura ambiente era de 17 graus, coerente com aquele inverno indeciso. Dividindo um banco de ferro e madeira, de frente para um relógio que lembrava o da igreja matriz, com seus números em algarismos romanos, assistia ao vai e vem das pessoas. Levantou-se e ajudou aquele senhor idoso, que se locomovia com dificuldade. Ele ficaria a espera da filha que talvez chegasse a qualquer momento, a contar daquele instante até a próxima vinda de Jesus Cristo – o trem atrasado estava ainda mais atrasado.


– Posso ajudar o senhor? – disse.

– Por favor, moço. Por favor – respondeu o homem, ajeitando a bengala.

– Aonde o senhor quer ir?

– No balcão de informações. Estou esperando a Marilza, acho que ela vai chegar daqui a pouco.

– Quantos anos o senhor tem, tio?

– 94.

– 94?! Nossa, Deus que me livre de ficar velho desse jeito!


Deixou-o em frente ao balcão, tentando se comunicar com o funcionário vagaroso e atrasado como o trem.

Em seguida, Márcio subiu uma passarela e saiu do outro lado. Entrou no restaurante e pediu uma dose de conhaque. Era dia de feijoada, mas talvez pedisse um bom filé de peixe com alcaparras, acompanhado por uma cerveja. O aroma que invadia o local prometia. De sobremesa teria pedido um pudim que parecia ter sido feito pela mãe de uma namorada dos tempos de adolescência. A experiência ainda estava entalada em sua garganta, ou na memória. Então desistiu de comer novamente aquela lembrança pra lá de indigesta.

Retirou a aliança da mão esquerda. Ajeitou o bigode curto e o boné, deixando aparecer o cabelo preto brilhante. Afastou o chinelo, como de costume, quando está em casa.


– Você sempre trabalha nesse horário, princesa? – apropriando-se da música ambiente, tentou conversar com a garçonete.

– Sim senhor. Folgo na terça – disse ela.

– Então vou voltar aqui na quarta, tudo bem? – Márcio engasgou.

– Pode voltar quando quiser, à vontade – disse a garçonete. – O senhor vai querer mais alguma coisa?

– Vou. Mas não vai ser aqui. Na terça-feira, pode ser? – recolocou os óculos de sol e fez menção de apanhar a mochila encostada na perna da mesa.

– Bem, eu não sou paga pra ficar conversando com clientes. Com licença – voltou para a cozinha.


Depois de almoçar, Márcio pediu a conta. Foi atendido por um garçom. Ele pagou o que devia e foi para a plataforma de embarque. Esperava pelo mesmo trem atrasado. Não tinha pressa. Se chegasse ao destino a tempo de ir ao casamento do amigo já estaria no lucro. Se quisesse, poderia voltar ao mesmo restaurante, mas não se animou. Se quisesse, poderia retomar a conversa com a garçonete, mas tentou ser prudente. Se quisesse, poderia evitar problemas.


Márcio procurou por um funcionário da estação. Perguntou sobre a previsão de chegada do trem atrasado. Depois tomou um café, que preferiu sem açúcar. Apenas evitou o restaurante. Queria rever a garçonete que o deixou falando sozinho. Mas não suportaria um novo fracasso.


Na plataforma de embarque, aproximou-se de uma criança. Brincou com ela. Com as mãos largas, tocou nos seus cabelos, uma sinfonia de cachos bem feitos. Fez um carinho que foi mal recebido. Sempre existe a possibilidade de que os dentes pontiagudos e os olhos profundos sob sobrancelhas espessas tenham contribuído para toda aquela rejeição. Por sua vez, os pais da menina o olhavam com um olhar que criava distanciamento e falava sobre desconforto.


– Você é uma menina muito bonita. Acho que eu tenho alguma coisa no bolso pra você – disse ele.

– Obrigado, não precisa se incomodar. Obrigado. Vamos filha. Nosso trem vai chegar – disse o pai, pegando-a pelo braço e acelerando os passos com certa discrição indiscreta.

– Será que vocês vão pra mesma cidade que eu? – Márcio insistiu. Não foi ouvido.


Finalmente o trem atrasado chegou. Márcio entrou rapidamente, como se tivesse muita pressa para chegar, mas queria apenas garantir um lugar privilegiado. Sua barriga atropelou algumas pessoas, a quem pediu desculpas, e seguiu esbarrando e pedindo desculpas, esbarrando e pedindo desculpas, até atingir o que considerou ser o melhor assento, junto à janela.


Só não gostou muito da pessoa que, em seguida, se sentou ao seu lado.


O trem atrasado seguia sem novidades. De repente, sem aviso, e no meio de lugar nenhum, parou, devido a um problema mecânico. Depois seria feita também a troca de locomotiva, um procedimento igualmente imprevisto naquela viagem. Essa interrupção, que o atrasava mais ainda, tornava a viagem mais demorada e o convívio com a colega de assento mais insuportável.


– Deve ser difícil ser gorda desse jeito – disse Márcio à mulher obesa demais até mesmo para os padrões de obesidade mais frequentes.

– É, moço, não é fácil. Não é fácil – respondeu, desviando o rosto.

– Me diz aí, do que a galera costuma chamar a senhora? – tentou fazer piada com a situação, falando com uma voz um pouco acima do tom. E insistiu.

– Ah, vai dizer que não rola uns apelidos...? – Márcio olhou à sua volta para estabelecer uma comunicação com a plateia improvisada.


Alguns passageiros riram das suas brincadeiras, acrescentando observações e comentários a quem estava mais próximo.


Mas ninguém fez, nem disse nada. Ninguém? Desculpe, fui impreciso. Alguém se levantou e tentou mirar os olhos de Márcio.

– A minha professora disse que isso é muito feio. É preconceito. Não pode falar assim! – disse uma menina de oito anos, furiosa, repetindo o que havia aprendido em casa e na escola sobre essa prática.


Os passageiros próximos riram da atitude da garota, que consideraram muito ousada para a sua idade.


A menina corajosa desceu 45 minutos depois – estava com os pais e a irmã dois anos mais velha.


A mulher os acompanhou, andando com dificuldade, como se não quisesse fugir dos cuidados daquela criança que assumiu sua causa. Entraram num ônibus estacionado no terminal. A mulher engoliu a seco e entrou num carro, que a esperava. E nunca mais se viram. ≡

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