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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ Ao sabor da mosca


Faltava pouco para o show começar. Bruna fazia parte da plateia, formada por uma grande parcela de jovens no corpo e na alma. Eram todos pra lá de admiradores da glorificada banda internacional, louvado seja Deus. Sua identificação com a mensagem das letras era imediata. É que a maioria dos integrantes tinha a mesma faixa etária. Como se não bastasse, cantavam melodias que falavam da realidade naquela etapa da vida nesse mundo que parece ter dado errado.

A noite era paciente e não tinha horários a cumprir. Às 4 da manhã poderia continuar sendo o período noturno, com muita festa pela frente – era tudo uma questão de preferência do distinto público.

Dentro de uma camiseta básica, impressa com a logomarca de uma grife americana, e sentada numa prosaica mesa redonda com amigos, a dentista saboreava uma fatia de torta de iogurte coberta com uma deliciosa calda de morango. Lentamente descobria o gosto de paraíso terrestre e se dava conta de que ele estava bem ali, na ponta da colher. Para acompanhar, tomava suco de mamão e leite condensado. Experimentava a sensação escandalosa de acolher cada gota daquele líquido reconfortante, que até deixava indeciso o calor e sem saber onde enfiar a cara.

Algumas moscas passeavam por aquele cenário decorado com gaiolas sem porta, que contracenavam com um grande aparato tecnológico. Não se sabe ao certo se elas eram fãs do grupo. Verdade é que sequer compraram ingressos e, num piscar de olhos, estavam lá dentro, reservando-se de maneira arrogante o direito de escolher o melhor lugar e até mesmo o cardápio.

E o que era o melhor lugar, o melhor prato? Para uma delas, um pedaço de torta e, de quebra, um copo de suco de mamão, sobretudo um que se escondia ao misturar-se com aquela substância leitosa e doce. De preferência, um que estivesse bem próximo da sua gula ancestral. De preferência, um que estivesse em mãos distraídas e sob um par de olhos ocupados com outras coisas bem longe dali.

De repente, não mais que de repente, como diz a poesia, a mosca intrusa tomou a decisão: sem pensar duas vezes, avançaria contra aquele doce meio esquecido e, depois, mergulharia no copo, como se participasse de uma Olimpíada sem pressa.

Ela também adorou aquela torta, inédita no seu aroma e paladar. Gostou tanto que resolveu pegar garfo e faca para que todo o serviço ficasse completo, respeitando as regras mais exigentes de etiqueta. Era como se também ela sentisse que o paraíso terrestre existe e pode ser encontrado em alguns alimentos, um pouco mais naquela torta e no suco.

O inseto foi competente no seu trabalho. Seguiu cada palavra da descrição feita em um anúncio assinado por nada menos que o Conselho Britânico de Educação e Saúde sobre como a banda toca, em detalhes, a partir do momento em que a mosca entra em ação. E tudo começou de maneira silenciosa, enquanto Bruna olhava para os lados à espera do marido, dando flashes rápidos em toda a movimentação, sobretudo a do palco.

Como todos os membros da família, aquela mosca não pode comer alimentos sólidos. “Sem problemas” – ela pensou. E então usou sua primeira estratégia, aquela que o inseto já nasce sabendo: para amolecer a torta, vomitou sobre ela. Decididamente sua mãe só havia lhe ensinado a sobreviver, sem dizer uma palavra sobre como evitar o risco de produzir coisas nojentas.

Verdade é que, não contente com o que já havia feito, foi para a segunda etapa: sapateou sobre o próprio vômito até conseguir transformar tudo numa massa bem líquida. Enquanto isso, com as patas, acrescentou uma boa dose de germes. Serviço completo é assim.

Para os padrões da espécie, seu trabalho ia bem. Àquela altura a coisa toda já estava fluida e escorregadia. Então ela tratou de sugar de volta tudo de novo, e certamente fazia isso enquanto soltava excrementos à sua volta. Quando terminou o trabalho, agora se dando por satisfeita e em condições de mergulhar no copo de suco, havia chegado a vez de Bruna se servir de tudo aquilo, sem saber da missa a metade.

Assistida de longe pelos pais, a mosca provocava neles sensações de aprovação, “boa menina, fez um bom trabalho!”, pensavam a respeito da filha que, ainda tão jovem, já cumpria de maneira exemplar as tarefas desenhadas desde sempre em seus genes. Tudo com a vantagem de que jamais esqueceria nenhum detalhe, porque nasceu programada para isso, e a desvantagem de que jamais faria algum progresso quanto aos métodos e processos nos próximos séculos dos séculos sem fim e um pouco depois.

Atrasado devido ao trânsito que naquele dia trabalhou com eficiência contra seu projeto de assistir a um show esperado por ele e sua mulher, Guilherme chegou, em busca de colher imagens para a sua coluna na emissora de TV. Na mochila, trazia o sapatênis que ocuparia o lugar do mocassim marrom.

No banheiro, agora seu camarim, fugiu de todos os espelhos, objetos sinistros para ele. Nem se importou com a desordem feita no cabelo pelo capacete usado na moto competente, deixando evidenciar ainda mais a testa proeminente. Com voz de radialista, vício de profissão, cumprimentou brevemente as pessoas que dividiam a mesa com Bruna.

Guilherme não teve dúvida na hora de localizar a esposa; nem foi preciso pedir ajuda ao Waze para circular entre tanta gente e não deixar de seguir, virar à direita, depois à esquerda, depois seguir, depois... até ouvir a voz automática informando que ele havia chegado ao seu destino.

Ela e a multidão se agitavam de corpo e alma, dançando, gritando no ritmo da primeira canção que incluía uma bateria cujo volume lembrava o choque de um meteorito com uma placa de lata e de aço maior que ele.

O corpo esguio de Bruna dançava e jogava os cabelos compridos por todos os lados. Suas mãos delicadas pareciam estar em busca do céu, e os lábios finos canalizavam cada palavra que compreendia como se competisse com os microfones. A mulher jovem, recém-saída da universidade e cheia de lembranças da primeira vez em que participou de uma festinha de Carnaval, revisitava suas memórias afetivas tocadas pela música, agora no papel de trilha sonora de sua viagem ao passado. De volta pra casa, compartilharia essa experiência nas redes sociais – seu ponto fraco era a pressa, tudo para ela era urgente, precisava, logo, mostrar o quanto havia se divertido, porque desejava ser vista sempre.

Arregalando os olhos de maneira ritmada, o marido ficou em pé, dançando, gritando, os braços abertos como se quisessem voar na emoção de mergulhar fundo em cada som emitido naquele ambiente agitado.

Lá e em todo lugar, Bruna não perdia uma oportunidade de descobrir um jeito de agradar o marido que sabia tudo sobre caminhar, amassar barro e celebrar as vitórias com ela. A esposa fugia das insinuações feitas pela família, de não ser gentil o bastante com ele. Novamente ela se lembrou desses comentários. Então foi tomada por um forte desejo de continuar mandando na própria vida.

Sabendo que Guilherme estava cansado e com muita vontade de comer e beber algo refrescante e consistente, e sem perder um segundo daquele show que havia se transformado em essencial para eles, pediu que trouxessem uma fatia de torta de iogurte com calda de morango e um bom copo de suco de mamão e leite condensado. Ele merecia pelo menos esse carinho. E ela sentia-se merecedora daquela vitória.

Nem um detalhe do show poderia fugir dos olhos atenciosos do casal e dos sentidos protegidos de tal forma por Guilherme para que até mesmo a picada de uma abelha passasse despercebida. O marido agradeceu ao receber o pedido. Agora havia chegado a vez de Guilherme, sem saber da missa a metade?

A alegria, cheia de sonoridade, estava completa. “Segue o baile”, diria a mosca.

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