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Foto do escritorRubens Marchioni

Altruísmo numa noite de verão

Era meia noite de um dia de verão. Com algumas janelas abertas, a cidade dormia um sono previsível e abafado. Lá fora, veículos e pessoas cumpriam suas jornadas, indo e voltando. Num trajeto rotineiro, conduziam a vida para o trabalho ou em busca do repouso merecido.


Mas não haveria descanso em todas as casas. Não haveria descanso naquela casa em particular, onde, de repente, a temperatura interna subiu a ponto de estourar o termômetro mais resistente. Era uma velha construção, levantada nos anos 1950, sem critérios arquitetônicos, com engenharia duvidosa e manutenção que deixava a desejar. Era previsível o fato de que, mais cedo ou mais tarde, aqueles velhos fios, calados até então, se chocariam, provocando faíscas irritadas e prontas para se espalhar.


O fogo inclemente acordou seus moradores. A fumaça ameaçava sufocar velhos, jovens e crianças. Sobretudo aquela menina de um aninho, aconchegada num berço repetido.


Honório, o vizinho, se colocou dentro da casa, ajudando no resgate de pessoas e animais. Esse negro idoso deixou de lado o fato de carregar 79 anos de vida sobre os ombros arqueados e a coluna desconjuntada. Deixou de lado também o fato de que sua saúde física tinha uma resistência insuficiente para grandes empreitadas. No entanto, a vida dos ameaçados de morte contava mais que tudo isso – tudo podia esperar, inclusive a pouca saúde. Seu objetivo era garantir a segurança de cada uma das vidas em situação de risco. No domingo anterior, na igreja que o recém-convertido frequentava religiosamente, o tema da pregação foi a prática do altruísmo. Ele se sentira desafiado pelo pastor, que do púlpito insistiu no poder destruidor da indecisão e das palavras vazias. “Não espere a casa do seu irmão pegar fogo para fazer alguma coisa por ele. Inclusive porque a casa pode nunca pegar fogo” – insistiu o clérigo. Pegou.


As chamas devoravam aquela moradia e o que ainda restava para seu consumo voraz e seu desejo louco de produzir muita cinza, fumaça e desespero. Honório pensou no fogo do Inferno. Comparou os dois e preferiu encarar o que estava na sua frente, imediato, bem menor e menos assustador. Na pior das hipóteses, esse poderia ser controlado pela força humana.


Velho e doente, Honório lutou como herói junto dos bombeiros. Encontrou forças onde nada existia. Agora trabalhando em parceria, tudo fez para salvar pessoas e animais que, sozinhas, teriam poucas chances de fugir com vida, tamanhas as proporções que a tragédia tomou num tempo muito curto.


Todos se salvaram. Todos, menos a casa, da qual restaram apenas as paredes, fumarentas e enegrecidas pelo fogo, entregues aos bombeiros para a prática rotineira de rescaldo e avaliação dos prejuízos materiais. Isso porque as perdas afetivas, essas ninguém pode calcular. Ainda não inventaram o instrumento capaz de obter resultados precisos nesse quesito subjetivo.


Todos se salvaram. Menos o cachorro Maroto, muito velho e meio cego, que não teve a mesma sorte. Na fuga, desnorteado, ele correu para a rua e foi atropelado por uma viatura do Corpo de Bombeiros. Isso marcaria a vida do velho negro.


O altruísmo pode encontrar obstáculos e limitações. É do jogo. Mas oferecer a própria vida pelo outro continua tendo um poder milagroso e resultados que as boas intenções estão longe de conseguir.


PrimeiЯa versão Um homem está dirigindo pela sua estrada preferida. Na direção contrária, vem outro carro, dirigido por uma mulher, que tenta se aproximar para lhe dizer algo. Mas o homem está preso ao paradigma segundo o qual “mulher ao volante só faz besteira”. Por conta disso, fica muito irritado. Mesmo assim, ela se aproxima e grita “pooorcooo!!”. Sem pensar duas vezes, ele responde, cheio de fúria: “vaaacaaa!!” E atropela um porco logo à frente.

Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto.rumarchioni@yahoo.com.br.

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