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Foto do escritorRubens Marchioni

■ Abaixo a discriminação

Minha amiga Corinna chegaria logo, ela e seu cabelo cor de trigo, geralmente coberto por um pequeno chapéu de feltro. Almoçaríamos juntos e colocaríamos as conversas em dia. Depois tomaríamos um café com chantilly e cada um seguiria o próprio caminho para cuidar da vida, porque o tempo passa e a agenda tem a péssima mania de não esperar.

Cheguei mais cedo e fiquei por aí, olhando vitrines e ouvindo o ronco de alguns motores italianos. Na banca de jornal, comprei uma revista carregada de fotos em branco e preto.

Nas minhas andanças por uma rua solene do bairro de classe alta, vi lojas que conheci de revistas sofisticadas esquecidas em algum canto. Por acaso, encontrei uma especializada em presentes finos.

Entrei. Imediatamente um segurança olhou bem pra mim. Fez uma medição completa. Analisou minha roupa, simples, e concluiu que eu não era um endinheirado. Não compraria. Talvez passasse a ideia de loja que está se popularizando demais, afastando os clientes pra lá de lucrativos. Poderia até trazer problemas, furtar objetos “carésimos” e coisas do tipo. “Melhor ficar de olho no sujeito”.

Tudo era muito claro nesse ritual: eu estava sendo observado, diria mantido sob suspeita. Afinal, tratava-se de apenas alguém sem cara de rico e cometendo o desatino, quase um atentado ao pudor, de não usar roupas e calçados de grife naquele ambiente.

Quando me dei conta disso e não precisei de mais de alguns minutos para a constatação, ia ficar chateado, mas preferi ver o que aconteceria. Não tinha pressa nem perderia nada com isso. Além do que, aprenderia alguma coisa e teria material para meu próximo conto.

Dei uma geral nos produtos sofisticados do andar térreo da loja. Mantendo a elegância que o ambiente pedia, parei, olhei e examinei. Vi a procedência – tudo Made in Não Sei Onde. Verifiquei os preços e quase cai de costas – “Vou até em casa vender o apartamento e já volto” - pensei. A cada passo, o segurança me seguia. Comecei a gostar do jogo. “Tudo bem, eu não estou com pressa. Vamos lá, então”.

Subi. O segurança atrás de mim. Andei. O segurança atrás de mim. Parei. O segurança parou. Segui. O segurança seguiu, seguiu-me. O relógio já estava impaciente. Mas eu e o meu querido segurança estávamos com pouco serviço naquele dia. Fiquei parado por um bom tempo; ele também brincou de estátua consigo mesmo, como num jogo combinado.

Desci. O segurança atrás de mim. Encontrei uma vendedora, ou melhor, uma consultora, alguém treinada para assessorar clientes indecisos, interpretar seus sentimentos e oferecer mais, muito mais do que eles pensavam receber – certamente foi assim que aprendeu em escolas de primeira linha.

Ela me atendeu imediatamente e tentando uma discrição que não me convenceu. Fez um Raio-X: cabelo, barba, dentes, camiseta, cinto, calça, cueca, meia, sapato, café da manha... – esqueci alguma coisa?

Seria eu um pobre coitado passeando pelas ruas sofisticadas de um bairro nobre pra ver e sentir como vivem os endinheirados e cometendo a ousadia de tomar um refrigerante de segunda linha antes de ir embora? Ou talvez se tratasse de um fazendeiro milionário, que não se preocupa com vestimentas, e que nas horas vagas fala com o filho sobre a administração das empresas do grupo, a começar pelo grande frigorífico e suas exportações?

– Oi, estou chegando. Onde você está? – disse Corinna.

Expliquei-lhe onde me encontraria. Disse que estava terminando de fazer uma coisa muito engraçada: observava o comportamento de alguns seres humanos em situações que em nada combinam com a sua realidade social. Corinna ficou curiosa.

Chegou. Seu corpo fino estava bem acomodado dentro de uma camiseta, calça jeans com rasgos propositais ditados pela moda e tênis branco com sola alta. Colocou as mãos elegantes sobre meu ombro e me deu um beijo no rosto, tão estreito quanto seus lábios. A pele da cor de marfim estava levemente maquiada, e combinava com a cor do pingente.

Contei-lhe a experiência nada inédita, porque certamente não foi um privilégio concedido a apenas uma pessoa. Detalhei um pouco, mantendo o foco em alguns aspectos particulares. Corinna ainda não sabia, e tinha direito à informação. Disse a ela que durante todo o tempo, desde que entrei na loja, o segurança ficou atrás de mim. Andei. O segurança atrás de mim. Parei. O segurança parou. Segui. O segurança seguiu, seguiu-me. O relógio já estava impaciente. Mas eu e o meu querido segurança estávamos com pouco serviço naquele dia. Fiquei parado por um bom tempo; ele também brincou de estátua consigo mesmo, como num jogo combinado.

Almoçamos – a carne de coelho roubou a cena. Corinna se encantou novamente com a luminária e os lustres do restaurante, além da arcada sob a qual havia um candelabro com história pra contar, um jarro antigo e alguns discos de vinil. O piano centenário não tocava mais. Da cozinha, chegava um odor de comida bem feita, a arte da gastronomia sendo praticada, presente delicado para o seu nariz pontiagudo.

Enquanto isso, uma cascata fazia seu trabalho com uma disposição tranquila, e uma borboleta pousou em uma flor para descansar de nada numa Coroa Imperial, que em silêncio falava sobre majestade, realeza, poder e glória. Corinna não lida bem com ambientes vazios, mas lá dentro ela se sentiu protegida entre tantos clientes. Como sempre, não deixava de observar fatos e pessoas, à procura de uma ideia para criar e escrever o roteiro de um comercial de TV para um cliente cheio de “Não gostei, quero outra ideia”.

– E você não disse nada ao segurança, ao gerente, sei lá? Ao menos pensou no briefing de criação para não se perder na hora de reclamar?

– Não, não falei nada. Mudei o botão e entrei no modo “Observador do comportamento humano”.

– E o que você pretende fazer com as suas conclusões?

Eu não parava de balançar as pernas, gesto que gente maldosa interpreta como TOC.

– Minha ideia é contar para mais pessoas. Elas precisam saber que isso existe.

– Você notou alguma coisa diferente aqui no restaurante? Sentiu-se discriminado?

– Não. Você sentiu? Eles foram muito gentis, fiquei impressionado com a atenção.

– O almoço é por minha conta – disse Corinna. Faço questão.

Depois entramos numa cafeteria, saboreamos uma bombinha de Baileys, iguaria que conheci há muitos anos, e pedimos um café com chantilly.

Bem pertinho dali, entramos numa livraria.

– Vou levar esse livro de contos da Clarice Lispector. Ela é ótima – disse Corinna.

– Eu vou levar esse, com trabalhos de Miró. Ainda tenho muito que aprender.

E mais não dissemos. O tempo acabou e a vida continuava, feita de exigências e protocolos a serem seguidos.

Seguimos e compramos pão especial, bem tostadinho e crocante. Sem discriminação.

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