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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ A vida pede socorro. O poder não ouve

Numa viagem incerta pela tarde molhada, a formiga Carmela entrou numa casa de veraneio, cercada pelo verde de árvores e pelo sabor das frutas. Nessa aventura, logo encontrou uma pequena cesta de pêssegos. Eles estavam sobre uma grande mesa, na área externa.


O local era bem coberto, como devia ser o espaço em que a família fazia as principais refeições. Certamente, aquele celeiro generoso teria sido esquecido por alguém que, na fuga do frio capaz de banir quem ousasse permanecer no local, acabou deixando para trás.


Agitada e cheia de uma insegurança crônica, que mal conseguia esconder, Carmela entrou. Vasculhou o local em busca de alguma vida humana, de algum perigo em forma de inseticida, guerra química com potencial suficiente para destruir um formigueiro inteiro. Subiu por uma perna da mesa, até atingir o seu topo. Uma grande pedra rolou bem perto, pertinho dela, e fez um barulho forte e ameaçador.


Carmela sentiu que poderia permanecer por ali em segurança. Talvez se alimentasse primeiro, quem sabe para reunir forças. Talvez alimentasse primeiro sua comunidade. Estava dividida. A tentação era grande. A indecisão, maior ainda. O tempo disponível para se decidir, esse era escasso.


Faminta e com a memória ainda aguçada pela necessidade, a formiga Carmela pensou no quanto seu formigueiro gostava da seiva daquela fruta, e agora, mais do que nunca, precisava encontrar alimento com urgência.


Voltou rapidamente para o formigueiro, a poucos metros dali. Elas viviam num condomínio que já ostentava paredes encharcadas pela chuva sem trégua. Pior ainda, o local estava prestes a ser identificado como unidade de Primeiros Socorros, mais do que residência. Era impressionante o número de habitantes, formigas de todas as idades, que adoecia muito depressa. Na maioria dos casos, as enfermidades eram resultado da alimentação escassa e quase sem nutrientes para manter o grupo minimamente saudável. Natividade, uma formiga ainda jovem, agonizava, com poucas chances de sobreviver.


Carmela convidou alguns de seus pares e começaram um trabalho árduo de seleção e transporte de seiva, sobrecarregando o corpo e as forças individuais. Onde teriam ficado aquelas que não vieram? Teriam se decidido pela ausência ou foram impedidas de se juntar ao pequeno grupo de salvamento?


Enquanto isso, descansando, mantendo o máximo de distância daquela realidade, e com a atitude arrogante de sempre, a formiga Iraci se espreguiçou lentamente, acendeu o charuto e respondeu quase sonolenta ao convite para o trabalho.

- Prefiro esperar, não se apressem, vocês estão estressadas a toa – disse Iraci, olhando para o teto ou para lugar nenhum.

- Esperar?! – respondeu Carmela, atropelando palavras e gestos. – Esperar?! Esperar o que?! – disse, irritada. – “Que sujeita idiota!” – pensou. “Em que mundo ela vive?”

- Sim, esperar até que surja uma opção mais adequada – disse lentamente Iraci. Mal terminou de pronunciar a última sílaba, saiu do local com o pensamento na sua pequena reserva particular de alimento, muito bem guardada. Nenhum comentário sobre aquelas que foram impedidas de atender ao chamado de Carmela. Talvez Natividade tivesse maiores chances de reagir, se as coisas caminhassem com mais velocidade do que o desinteresse letal de Iraci.


Quando tudo caminhava dentro de certa normalidade, com o grupo coletor de seiva, um garoto esbarrou na cesta e as frutas rolaram até uma poça d’água. Isso foi mais do que suficiente para colocar em risco algumas chances de sucesso daquela jornada em busca de alimento e de vida.


Enquanto trabalhavam, outro problema se colocou no caminho e ele desafiava a todas. A ameaça chegava travestida de uma chuva forte, cuja enxurrada insistia em levar tudo embora, ignorando a pressa dos insetos famintos e a lentidão das decisões para garantir o essencial àquele formigueiro.


Era preciso salvar aquela quantia enorme de alimento, suficiente para garantir refeições regulares para as formigas, por uma semana. Também era preciso salvar aquelas que corriam risco de morte por inanição, cansaço e, agora, por afogamento.


No entanto, não havia tempo e mão de obra para toda demanda de trabalho. Aquelas que estariam disponíveis viviam presas por uma intensa e intrincada teia de burocracia capaz de impedi-las de agir rapidamente.


Então surgiu a necessidade de decidir o que ficaria em segundo plano: salvar vidas individuais e comprometer a vida do formigueiro há muito tempo sem alimento, ou garantir a sobrevivência da maior parte do grupo ainda que em prejuízo deste ou daquele indivíduo.


Na dúvida, resolveram fazer uma eleição, mas não houve consenso. Entre vaias e aplausos, Iraci considerou secundário salvar o grupo. No corpo de Natividade, o grupo sofria as consequências do descaso.


Com a vida em risco, e sem direção, cada formiga passou a agir pela própria cabeça. Somente as mais fortes se salvaram.


Enquanto isso, a chuva, que passava por ali feito estouro de boiada sob ataque de cobras venenosas, levou embora a maior parte do estoque de pêssegos, inteiros e em pequenos pedaços.


Iraci começou a sentir fome. Natividade não se alimentava a um tempo maior do que poderia suportar, embora ainda resistisse. Ainda.


Quando enfim a chuva passou, deixando cansada a tarde entregue à força das horas, algumas formigas foram até o local para resgatar o que fosse possível – menos Iraci, que apenas manipulou um pequeno grupo, a fim de garantir o máximo de resultados a favor dos seus princípios que o bom senso jamais aprovaria.


Resgataram alguns corpos e pouco mais de alguns fragmentos de pêssegos, machucados em consequência das quedas que sofreram no confronto com a força da água e dos tijolos.


Levaram o que foi possível para o formigueiro.


Uma vez em casa, exaustas depois de tantas discussões vazias e muito trabalho, jogaram no lixo uma parte do que havia se tornado impróprio para consumo.


Mesmo sob ataques da Formiga-Rainha, fizeram nova votação para decidir quem teria direito ao pouco que restou.


De novo não houve consenso.

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