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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ A propósito, doutora

Eram duas horas da madrugada e chovia devagar. Luciano estava em casa quando, movido por um impulso que não entendeu, e sem tirar o pijama, correu para o hospital. Seus olhos tinham bordas vermelhas. Nervoso, cantarolava e falava sozinho, como sempre, enquanto pensava num jeito de forçar o médico a dar alta para sua esposa. Isabella estava internada, com sintomas de febre, dores, fadiga e tosse, para tratamento de uma infecção duradoura e de origem incerta.

Isabella precisava de um diagnóstico seguro, feito depois de uma avaliação médica criteriosa. Não queria repetir a experiência de pagar caro pela ingestão de antibióticos feita sem qualquer segurança. E já estava bastante satisfeita com o peso atingido depois da doença. Sem se importar com o resto, o esmalte continuava, assíduo, em suas mãos, e o cabelo fino era igualmente bem cuidado. No entanto, e a contragosto, o quase inseparável pingente estava na bolsa.

Uma amoreira carregada tingia de vermelho a calçada, mas Luciano não percebeu. Na Recepção, ele repetiu o que ensaiou no caminho. Aquela história já havia sido contada em outras situações, embora com resultado questionável. Pudera, quando o aluno sepulta a quarta avó, no mesmo semestre, para evitar o desconforto da prova, até mesmo o professor mais distraído começa a desconfiar. Mesmo sabendo que poderia ser desmascarado, ele aceitou o risco.

– Bom dia, minha amiga. Olha, eu morro de medo de infecção hospitalar...

– Em que eu posso ajudá-lo?

– Olha, a tia Lu morreu por causa disso, sabia? A minha mulher está internada aqui... Ela corre perigo, moça, a Isabella corre perigo, eu sei, a Isabella corre perigo, moça...

Luciano até poderia ter razão, não fosse por detalhes que não confessaria nem a si mesmo, num confessionário escuro feito breu.

O advogado confuso era muito avarento. Queria cuidar dos negócios e precisava de Isabella em casa, cuidando da infraestrutura e deixando que ele ficasse livre de serviços que para ele entravam na categoria “1,99”.

Luciano pediu para falar com o diretor clínico do hospital. Agitado, defendeu seu direito de decidir sobre a vida da esposa, acima da lei. Só não estava bem seguro quanto a isso.

Não foi atendido. Sem ver Isabella, voltou para casa e tentou dormir, não sem antes derrubar uma estrela do mar que havia sobre a mesa da sala. Quando o dia amanheceu, Luciano já estava entre os livros, buscando argumentos legais para justificar sua decisão. Pensou em acionar o hospital na Justiça. Não decidiu nada além de escolher outro lugar para o quadro que emoldurava um camaleão desenhado pela sobrinha.

Apenas queria sua esposa em casa o mais rápido possível. Aos 34 anos, conciliar trabalho profissional e doméstico estava longe de ser uma experiência confortável para ele. No mesmo dia, teve de aprender, por ensaio e erro, a manusear objetos complexos como o liquidificador e a máquina de lavar. Sem contar que precisou conviver com a mania alimentada pelo óleo, que se diverte queimando a mão de gente distraída, apenas porque atingiu a temperatura máxima. “Fritar e comer ovo não é tarefa para os fracos. Nem para principiantes” – refletiu, com uma pontinha de humor.

– Oi, Raul, você está no clube? Ótimo. Passo por aí daqui a pouco, preciso falar com você. É sério – Luciano resumiu a conversa e desligou. Falariam pessoalmente.

Encontro combinado, ele se produziu rapidamente, com a alpargata de sempre, camiseta branca, bermuda jeans e o boné onde se lia a sigla NY. Em alguns minutos tomaria uma cerveja com o colega e conversariam sobre a sua decisão de trazer de volta a esposa a qualquer preço. O clube vivia lentamente, com poucos frequentadores, naquela manhã de quarta-feira. E os negócios de Luciano poderiam esperar, nada era mais urgente.

De volta para casa, Luciano parou por mais de uma hora num parque, onde tomou um café e refletiu sobre sua decisão. Até falou sobre ela a um desconhecido que também estava na cafeteria.

– Pois é. Agora preciso ir, tenho de trabalhar. Até logo – disse o colega temporário de balcão. Luciano queria falar mais. Não falou.

Em casa, fez o rascunho de uma petição judicial. Mas não encontrou a fundamentação jurídica necessária. No mais, ficou em dúvida sobre sua decisão, cujo resultado poderia chegar muito tarde. Guardou o rascunho.

De alpargatas, voltou para o hospital, direto para o apartamento em que Isabella se encontrava. Não havia previsão de alta para ela, era preciso esperar pelo resultado de novos exames. Essa foi a informação dada por Dra. Morgana, médica de plantão, que acabava de visitá-la, cumprindo sua rotina de todos os dias.

– Por favor, doutora, eu preciso levar minha mulher. A tia Lu morreu de infecção hospitalar, por favor, por favor!

Sem sucesso, Luciano insistiu que assumiria a responsabilidade pela sua decisão, e até pensou em um caminho mais pessoal para resolver o problema, sem que ninguém ficasse sabendo - “Sabia que a sua pele sardenta é muito bonita?”. Espremendo os lábios finos e robóticos, a médica se comprometeu a pensar no assunto, não se sabe no que exatamente ela pensaria. No trabalho, além de manter a ordem, Dra. Morgana também se esforçava para obter a aprovação da família, que a criticava por gastar mais do que o seu salário.

No quarto, esperando por uma resposta, Luciano ligou a TV e quase assistiu a um telejornal, enquanto Isabella dormia sem conhecer os bastidores.

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