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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ A lebre fugiu

De repente, a lebre saiu correndo. Corria muito o animal apressado. Fugiu para o meio do grande pomar.

Enzo era muito descuidado e nem se deu conta do que estava acontecendo. Simplesmente continuou olhando para o cata-vento que, preso na parte mais alta da casa em estilo colonial, se movia de um lado para outro, mirando o horizonte. O rapaz, um jovem frequentemente nervoso e incapaz de aceitar críticas, estava passando uma temporada na fazenda do avô, antes de iniciar o curso de Agronomia. Ali ele também descobria o que é o aroma de uma florada de café, lençol branco que veste toda a plantação, e entenderia que existe vida longe da fumaça.

Quando se acomodava na rede estendida na varanda próxima à cozinha, perdia-se olhando exatamente para lugar nenhum e cantarolando.

– Enzo, você não se deu conta de nada? – perguntou a tia, fazendo com o cabelo comprido um rabo de cavalo preso por um elástico vencido.

– Não? Do que você está falando, tia?

– Gente, como você é distraído, garoto! Meu Deus, só Jesus na causa!

– Tá, mas do que você está falando? “Acho que deu ruim pra mim. Saco!” – Enzo pensou.

– Estou falando que uma lebre fugiu. E ela fugiu agora, porque há cinco minutos ela estava aqui.

– Não, não vi. Como a lebre escapou, se a tela não está quebrada? – Enzo mordeu os lábios, mania corriqueira quando precisava responder uma pergunta inesperada, sempre cheia de urgência.

A plantação de hibisco, do lado direito da cozinha, não estava nada preocupada com sumiços nem com evasões. Contentava-se em cobrir de flores o pequeno jardim que fazia todo esforço para demonstrar sua gratidão pela beleza sem nenhum custo. Mais do que isso, sem pedir nada em troca, a planta se transformaria em chá e sentiria o prazer de entregar mais do que a natureza prometeu.

Falava-se com segurança que as flores seriam um santo remédio para Enzo, que desejava emagrecer e tinha urgência de recuperar a forma física perdida. Seu eterno macacão jeans bem que fazia o trabalho de disfarce da realidade indisfarçável. Sem sucesso.

Seu corpo ossudo havia sido derrotado numa guerra meio de mentira, travada sem determinação, contra um exército imoral formado por bolos recheados de ameixa, compotas que se espreguiçavam sobre o pão caseiro e outras aventuras gastronômicas oferecidas pela avó.

Ela era uma doceira de mão cheia. Com o cabelo eternamente de coque, sempre repetia o jargão “Você não comeu nada! Não gostou da comida? Não gostou do doce? Me dá seu prato.” E ele obedecia prontamente. Avó locuta, causa finita.

Santo Agostinho pedia aos céus a castidade, apressando-se em dizer ao bom Deus que não tivesse pressa quanto a isso, porque ele não queria atrapalhar a agenda do Criador – “Senhor, dai-me a castidade, mas não agora”, dizia o futuro santo. E “Amém”. E não se fala mais nisso.

No melhor estilo de Agostinho, Enzo rezava e pedia, com fervor, dizendo coisas como “Senhor, dai-me controle sobre a gula, mas não agora. Amém.” Se alguém o questionasse, em sua defesa puxava pela oração cautelosa, repetindo-a entre aspas e citando a fonte; dizia estar seguindo o santo da sua devoção. Devoção?

Enzo era tão previsível quanto o show de Roberto Carlos em dezembro. Por isso as pessoas da casa não combinavam nada com ele, apenas se preparavam para a sua próxima ação. Ou reação.

No mesmo instante em que usava o aspirador de pó e fazia uma despretensiosa maquiagem no seu quarto bagunçado, tentando cumprir sua tarefa, Enzo deixava tudo, cobria a cabeça com o chapéu panamá do tio e, descalço como sempre, tomava outro rumo.

Pegava o carro antes que alguém notasse, o rock pesado fazendo a trilha da aventura e ia até a cidade, que o abraçava. Novamente a lixeira repleta ficava para trás.

Enzo gostava de frequentar o mercado municipal, um festival de oportunidades pecaminosas e onde encontrava delícias como cacau em pó e achocolatados. Num raio de 360 graus, nada escapava dos seus olhos aguçados. Em casa, os ingredientes seriam misturados com uma porção generosa de suco de maracujá, chocolate, cacau, granola, iogurte e leite. Ele adorava essa “mistureba” que, até onde se sabe, nunca explodiu. No pão, uma camada de manteiga e geleia light, para não engordar. E isso era só o começo do início.

Movido pelo medo avassalador de um possível eventual desabastecimento, ele comprou mais um kit completo, que disputaria espaço com outros produtos repetidos, na dispensa.

– Enzo, você comprou tudo isso de novo?! Mas você não vive dizendo que quer emagrecer, que vai fazer regime...?

– Tia Laís, você é meio desinformada, né? Manja bem de Fisioterapia, mas...

– Desinformada? Eu?!

– Sim, tia, você. Esse lance de regime é coisa que a gente faz aos poucos – nunca leu sobre isso?

– Não, não li. Onde está escrito isso, menino? E o que é aos poucos? Uma mudança a cada quatro meses?

– Onde está escrito isso, ora, onde está escrito isso... E precisa estar escrito?

– Sei, deve estar escrito nas estrelas.

– Você não percebeu que substituí o açúcar do café por adoçante? Quando eu me acostumar eu faço outra mudança, falô? E vou tomar cerveja e sorvete só duas vezes por semana, pode anotar.

– Enzo, se você não perder a mania de comer não adianta, meu filho, não adianta.

– Tudo bem, tia, então vamos combinar: eu perco a mania de comer e você perde a mania de não sentar em lugar nenhum, quando chega, se não trocar de roupa primeiro, tá ligada? Combinado?

Enzo foi até a cozinha. Na geladeira não faltava ovos. Fritou dois deles e fez um sanduíche de pão caseiro. Uma delícia!

Como a distribuição de tarefas não havia sido revogada, muito contrariado ele pegou a tábua de passar roupa, ligou o ferro e passou sua camiseta – as outras ficariam para depois, e seriam retomadas no mesmo ritmo da sua dieta sem estresse, porque – dizia -, estresse engorda, provoca manchas na pele e perda do cabelo, tudo em uma única semana, uma coisa horrorosa!

Ele abriu o velho armário da cozinha, feito há décadas com madeira de lei e vidro jateado. Reuniu alguns ingredientes, sem se esquecer da caneca de louça com o emblema do seu time, que evito nomear para não criar problemas diplomáticos com meu prezado leitor, minha querida leitora.

– Vovó, você quer que eu prepare um pra você? E você, titia, vai querer? – sua voz falava de busca por cumplicidade, essas coisas. Se fosse preciso, aceitaria discutir as bases para uma delação premiada.

A avó não ouviu. Naquele momento ela estava ocupada demais diante do espelho, próximo à porta do quarto, checando novamente sua pele com rugas esbranquiçadas e sentindo vontade de esconder tudo aquilo, bastando para isso descobrir como. Ela se lembrava de que a toda hora a filha tentava consolá-la dizendo sempre o mesmo “Não fica triste, mãe. Eu também não sei mais o que fazer com o meu rosto cheio de sardas nesse sol”. Mas isso não resolvia.

Laís respondeu.

– Não, Enzo, obrigada. Preciso encontrar a lebre que você deixou escapar. Seu avô está pra chegar, ai meu Deus. Bem que você podia fazer isso, não acha? – se a boina do avô estava no porta chapéu isso dizia que o patriarca chegaria antes do esperado.

A lebre já havia regressado do passeio. Estava dando um tempo, atrás da casa, beliscando uma coisinha aqui, outra ali. Ainda não sabia se era o caso de voltar para o viveiro. Talvez esperasse pela chegada do pai de Laís. Ele não pegava tão pesado.

Mas ninguém a viu. Eram descuidados.

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