Nossa vida é feita também de medos. A propaganda é especialista em trabalhar com eles: medo de parecer pobre, medo de ficar velho, medo de não ser atraente, medo de não ser inteligente, medo de não ser bonito, medo de ser gordo, medo de ter medo... Por fim, morremos de medo de que todos esses medos comprometam a nossa vida roubando-nos os espaços que julgamos ser nossos.
Alessandro era um depósito de medos. Mas tinha pavor mesmo de inundação – fruto de uma experiência terrível vivida na infância, quando foi derrubado por uma correnteza ao retornar da escola. No verão, o céu fica estressado e jogava para a terra toda água que havia acumulado. Só de saber, Alessandro ficava inundado desse medo.
Na cidade, ele morava no trecho de um bairro famoso pelos alagamentos que aconteciam quando chovia um pouco mais. O sítio dos seus pais estava numa região em que, talvez só na aparência, chovia mais do que em qualquer outro lugar do planeta. Ou seja, o rapaz de 17 anos vivia amedrontado até mesmo nas horas de lazer.
Mas, então, ele foi passar ali o final de semana. Estava cheio de planos de pegar uma cor, em volta da piscina, um lazer regado à cerveja especial, conversa jogada fora – como sempre, o campeonato de futebol do momento seria a estrela da pauta recheada de piadas contra seus adversários – era um negócio de família.
Naquele dia, o céu estava decidido a produzir, com muitos efeitos especiais, “O dilúvio” – Parte 2, programado, talvez, porque a primeira parte não foi suficiente para cumprir o seu propósito de limpeza geral.
O elenco do espetáculo horroroso estava escalado: dilúvio, o vilão, contra Alessandro, o garoto questionava até mesmo a ideia de que os peixes – até eles, imagine só – fossem obrigados a conviver com tamanha quantidade de água, jogada de uma só vez.
A inundação anunciada aconteceu. Mais do que chuva, havia um vento forte, que colocava a água na posição horizontal, balançando o pequeno sino de bronze preso ao pilar da varanda. Ao fundo aconteciam efeitos especiais em forma de relâmpagos e raios, seguidos pelo som grave de trovões que não desafinavam.
O toldo, feito de um plástico grosso o suficiente para enfrentar grandes investidas da natureza, foi arrancado do lugar – a força do vento conseguira arrebentar um dos ganchos que o prendiam ao chão. A varanda da casa foi inundada, molhando a rede de descanso e as cadeiras. Do lado de fora, a amendoeira perdeu um dos seus galhos mais fortes e a coruja, a codorna e o gato manhoso trataram de dar o fora daí, talvez por saberem que dessa vez não poderiam contar com o Noé bíblico para construir uma nova arca e abrigá-los da tempestade.
A energia elétrica também deu o fora, deixando apenas a escuridão que a velha lamparina não conseguia vencer, e se prolongou madrugada afora. O desafio de Alessandro ficara maior: além do medo de uma inundação, que certamente poderia atingir a casa, também teria de conviver com a escuridão, um escuro que para ele estava encharcado de perigo, sabe-se Deus o que ele esconderia – para o garoto, tudo era possível, inclusive encontrar um dragão escondido embaixo da cama pronto para emitir fogo.
Enquanto isso, lá fora, Getúlio usava a pequena estrada, asfaltada com lama vermelha e buracos a solta, para voltar da cidade onde comprara o jornal diário e um livro sobre a cultura de eucalipto. Mais do que isso, e como sempre e sempre, trouxe mais uma leva de alimentos e outros itens muito além do que precisavam para uma vida normal que não seriam consumidos ou usados.
A água violenta, na horizontal e na vertical, teve força suficiente para neutralizar o peso do seu carro. Alessandro estava no banco do carona. Livrando-se dos óculos com lentes molhadas, e levantando as sobrancelhas pesadas, Getúlio mantinha o foco, usava todas as estratégias aprendidas ao longo da vida para se safar desse e de outros perigos. O garoto de pele clara e olhos cinzentos, enfiava o pé no acelerador e no freio imaginário, quase amassando o lugar onde ficavam os seus pés, capitaneados por um par de pernas trêmulas.
O carro dançou. Foi prensado pela água junto a um barranco cheio de vontade de desmoronar a qualquer momento.
Getúlio arrancou com tudo. O carro patinou. Sem carteira de habilitação, Alessandro freou, brecou, assumiu o volante, simulou tudo o que achava que seu pai deveria fazer numa situação daquelas.
Uma pequena cachoeira só fazia aumentar, alimentada pela água forte que se jogava estradinha abaixo. Novamente o carro foi jogado contra o barranco. Getúlio acelerou. O carro patinou e, primeiro uma, depois a outra, as rodas se enfiaram no chão, fazendo toda força para sair e se afundando a cada nova tentativa.
- Pai, eu não entendo como é que você fica tão calmo numa hora dessas! – disse Alessandro, balançando a cabeça e jogando para trás o cabelo comprido.
- Eu fico calmo porque é preciso ficar calmo. Se me apavorar fica pior, entendeu?
Para o engenheiro florestal, ser apreciado pelo filho era essencial, e aquela lhe parecia uma boa oportunidade para essa conquista. Conhecido na família como o “Doutor Autocontrole”, Getúlio ligou para o zelador do sítio e pediu ajuda.
Outros carros passavam por aí, motoristas curiosos, fazendo sempre a mesma pergunta “Nossa!, o que aconteceu, atolou?” e seguiam em frente. Em silêncio, mexendo lentamente na barba rala, Getúlio respondia “Não aconteceu nada, a gente parou aqui pra apreciar a grama e preferimos enfiar as duas rodas do carro no chão, colado no barranco, pra ele não fugir, seu idiota!”
Não bastasse isso, estava novamente sentindo-se perturbado com a dúvida e a necessidade de se certificar se, antes de sair de casa, havia fechado portas, janelas, gás, fogão, geladeira, torneiras e se desligou os eletrodomésticos.
O zelador chegou, ele e seu pequeno trator, com uma corrente que não faria nenhuma grande diferença naquela circunstância. Não fez. Por pouco o trator não teve a mesma sorte, se é que esse transtorno merece esse nome.
O seguro foi acionado. Finalmente chegou o veículo que faria a remoção. Alessandro pensou em descer, mas desistiu – havia muita água correndo e muita lama esperando algum desavisado que pudesse ser derrubado por ela.
O carro da seguradora removeu o de Getúlio, agora mais pesado, graças ao pavor de Alessandro.
O garoto voltou para o sítio e viu que a água, grande e forte demais para ser suportada pelo pequeno rio que cortava aquele trecho, ainda queria jogo - “Vou chamar a Defesa Civil” – pensou. Naquele instante ele desejou voltar para casa, 80 quilômetros longe dali, de onde nunca devia ter saído.
Inundado de medo, só voltou para o sítio no inverno, dois anos depois – sem piscina, sem cerveja, a conversa girando em torno do frio que os mantinha trancados dentro de casa, sem riscos de uma nova inundação.
Ufa! ≡
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. rumarchioni@yahoo.com.br. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao
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