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Foto do escritorRubens Marchioni

■ A casa fechada

De manhã acordava e permanecia no aconchego da sua cama. O que não chegava a ser uma escolha feita por ela mesma, mas isso é apenas pressuposição. Talvez mesmo um prejulgamento.


Do seu canto, olhava com preguiça para alguém que saía logo cedo para o trabalho, e a cumprimentava rapidamente. Os muitos afazeres diários levam embora pessoas apressadas, que depois trazem o pão de todo santo dia. Elas são essenciais.

De longe ela acompanhava atenta a movimentação de quem se dirigia à cozinha. Sentia o aroma do café sendo preparado. Para ela, a cozinha era apenas isso: o sonho de consumo, possibilidade de viver intensas experiências gastronômicas.

Pensando nesse templo sagrado, presumia a existência de apenas uma pessoa cuidando dos detalhes, enquanto as outras ainda ficavam à disposição do sono insistente. Eles, os detalhes, contavam muito para um perfeccionista. Cada ingrediente devia merecer o cuidado que se vê no restaurante dos Jardins.

Enquanto aguardava, mantinha-se recolhida em seu quarto. Era a última a se alimentar. O que já havia se transformado numa rotina desde que fora viver naquela casa enorme, a sala lembrando um showroom e a matriarca permanecendo o maior tempo ali, naquela poltrona, falando com ela num idioma que nem sempre entendia.

O cardápio era claro. As frutas eram descascadas, cortadas em pedaços regulares, separadas em pequenos recipientes. Parte dela se convertia em vitamina, preparada exclusivamente para a matriarca.

Uma fatia de pão de forma era cortada em pequenos cubos, depois de receber uma camada de geleia de frutas. Era a liturgia do cuidado, adequadamente celebrada naquele pequeno altar – “Obrigada, Senhor, pelo nosso alimento. Que ele não falte na nossa mesa e na mesa de ninguém. Amém” – orava a primeira ministra daquele pequeno reino, zelosa quanto ao dever de agradecer e servir, antes de cada refeição. “Quem não vive para servir não serve para viver”. Ela servia. Pão e frutas se misturavam, pelas mãos trêmulas da matriarca, no seu cálice pessoal, e ela se deliciava com aquela alquimia.

Enquanto isso, do seu canto, ela simplesmente ouvia. Percebia os aromas, que em silêncio viajavam até seu quarto instalado bem perto da cozinha. Depois que todos tomavam café, chegava finalmente a sua vez, e a sua porção de alimento já estava definida desde os primeiros tempos.

De longe, ouvia as conversas da manhã, algumas ainda sonolentas, outras com jeito de simples rumor. Tudo era dito em voz baixa. Apenas os talheres eram ruidosos, quando lançados à pia, como na prática de um esporte que por vezes decidia o responsável por essa ou daquela tarefa diária.

Disputas à parte, finalmente ela se juntava aos demais moradores. Ficava quieta no sofá – a poltrona era espaço exclusivo da matriarca –, de onde apreciava a movimentação da casa. Tinha ali o seu cômodo preferido para depois das refeições.

Na sala enorme, numa grande mesa junto à janela, escritores conversavam entre si e com as palavras. Ela não sabia ao certo o que estava acontecendo. Conhecia algumas palavras, sim, mas não todas, porque o vocabulário é muito extenso. Seu repertório era escasso. Mas ouvia muito bem.

De repente, um barulho vinha da rua. Corria até a sacada. Procurava interagir, dizer alguma coisa, numa conversa que se mantinha a distância e repetidamente era abafada pelo barulho de ônibus, carros e motos. Sem sucesso, voltava para o sofá. Ou para o seu quarto. Ou para a cozinha. Sim, para a cozinha, onde os alimentos eram preparados. Adorava os momentos em que ganhava algum sequilho. E os momentos em que podia comer algum pedaço de tomate ou de laranja. E aqueles em que recebia algum pedaço de pão. E tantos outros que vivia nesse espaço sagrado. Mas não era dada à vida em clausura, que ninguém se engane.

O convite para um passeio lhe caía muito bem. “Vamos passear?” era uma pequena frase melódica, poesia pura, à qual acedia imediatamente, antecipando-se, descendo as escadas numa corrida que atropelava os degraus.

Depois de finalmente ganhar a rua, mantinha um apurado senso de observação. Era meticulosa, detalhista. Tudo merecia de sua parte uma pequena pausa. A regra era perceber sons e aromas. Investigar. Ao menos tentar descobrir o que se escondia em cada detalhe. Certamente na esperança de encontrar mais do que objetos descartados, pedaços de madeira, pregos e parafusos enferrujados. Fazia tudo sem, no entanto, abrir mão das possibilidades de intercâmbio.

De um jeito ou de outro, procurava estabelecer diálogos, sempre interrompidos pela pressa do acompanhante, pouco dado à ideia de falar com desconhecidos. Ela desejava ser sociável, ser uma com os demais, e ficava feliz com as pequenas possibilidades de dizer um “oi” sem ser interrompida. O passeio era curto, algo protocolar.

Durante algum tempo não gostou de crianças. Elas eram barulhentas. Alguém acabaria se dando mal com tamanha alegria exposta. Mas depois fez as pazes com elas também. Talvez tivesse refletido e chegado à conclusão de que a vida é curta demais para se ocupar com rejeições desnecessárias e sem justificativa. Se as crianças são alegres e falantes, que se alegrem e que falem. Desde que não lhe faltasse comida e alguns passeios.

Voltava para casa e estava exausta. Por vezes se recolhia ao próprio quarto. Ou se acomodava no sofá e, silenciosa, observava tudo sem nada dizer. A menos que alguém fosse para a cozinha, onde poderia receber alguma porção de alimento. De resto, se mantinha aberta a outras experiências que acenassem para alguma recompensa pelo cumprimento de certas regras estabelecidas.

Agindo assim, nunca recusava o banho. Principalmente porque ele era a garantia de que depois seria brindada com um lanche especial, já previsível.

As chegadas e saídas aconteciam como nas outras casas, pequenas ou grandes. O homem do sacolão. O homem da casa de carnes ou da casa de bolos. O homem da esfiha ou da pizza. O homem do pequeno mercado ou dos produtos de limpeza. O homem que ela nunca pode receber a seu modo, porque alguém sempre se antecipava, pronto para roubar e dominar a cena.

De repente, alguém viajava. Também de repente, alguém chegava de viagem. Depois viajava de novo. E chegava de novo. E ela nunca era convidada a entrar no carro. Verdade é que ficava sempre em casa. Acreditava ter atingido o status de cargo de confiança. É, aquele imenso casarão devia ficar sob os cuidados de alguém de confiança. Fazia sentido.

Mas um dia alguém mudou de casa. Depois mais alguém foi embora. Depois aconteceu outra mudança. Depois ela também se mudou, e era uma casa totalmente diferente, ficava num lugar muito alto. Não era imensamente grande como a outra, e se chegava por meio de um elevador – coisa estranha isso de entrar numa caixa que fecha a porta e dispara levando junto o silêncio de quem se dispôs a essa aventura.

Um dia soube que em uma das casas onde foi viver, uma antiga habitante lhe homenageou com uma réplica, uma estatueta de louça, batizada com o nome de “Topinha”. E assim ela continua na sala, observando silenciosamente a vida que passa. Agora sem latir.


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