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  • Foto do escritorRubens Marchioni

■ A casa de Deus.

Juvenal era ainda um quase adolescente. Com suas botinas surradas, entrou na igreja matriz e ajoelhou-se, tremendo, talvez de emoção, talvez de medo, talvez não sei por que. Tinha o cabelo cortado pelo seu pai, com sua velha máquina que nada sabia sobre esculpir. Vestia um calção de brim, que não combinava com a camisa xadrez, e se deliciava com os enfeites natalinos da cidade.

Sentou-se num banco sólido, entalhado em madeira de lei muito bem trabalhada, artesanato feito por mestres da carpintaria canônica. Algumas vezes se ajeitou de novo no banco, mantendo o ritual costumeiro de balançar as pernas.

Recostado naquele objeto com design de primeira linha, os olhos percorrendo as recobertas de altares, enquanto se perguntava se para ser santo era preciso, ter roupas como aquelas que vestiam, algumas salpicadas de ouro. Nesse caso, sabe quando Juvenal seria santo? Ele, com aquela calça de brim, teria alguma possibilidade nessa área? Claro que não. Afinal, santo se veste muito bem.

Tudo ali era solene: o altar principal, o púlpito de onde o sacerdote interpretava o Evangelho para aqueles que participavam da missa dominical, rezada em latim, as palavras emitidas dentro de uma coreografia bem ensaiada. A decoração daquele templo incluía flores como hortênsia, jasmim, lírio, rosa branca e tulipa.

O teto... Ah! o teto! Os vitrais coloridos... Ah! Os vitrais com tantas cores harmonizadas que pareciam dispostas a partir do círculo cromático. Talvez elas tivessem sido emprestadas do céu.

E quanto às paredes? Juvenal nunca vira uma parede daquelas – nem o papel de parede mais rico produziria aquele efeito. Ali, tudo era muito diferente da sua casa na zona rural – aquele lugar só podia ser a residência de Deus, um convite para o Eterno.

Tudo ali era solene demais. Tudo ali era majestoso. Tudo ali falava de outro mundo, feito de paraíso eterno. O aroma de incenso, constante como a luzinha que, no altar, indicava a presença do Santíssimo Sacramento, tudo se harmonizava para tocá-lo de alguma forma.  

Ressabiado, Juvenal olhou o primeiro altar bem junto à parede principal e ao lado de outros. Em um deles, havia a imagem de um santo, candidamente segurando o Menino Jesus. Sua pele era bem clara, sem marcas da idade e com uma cor rosada e brilhante. A expressão facial falava de vida eterna, pureza e libertação plena das mazelas que por aqui nos deixam sempre manchados de novas manchas e epidemias. Ele não tinha mãos que exibiam unhas sujas de terra, nem olhos assustados; ao contrário, seus olhos eram azuis, um azul europeu, dedicados a penetrarem a alma de Deus e a ele prestar reverências, como convém à liturgia do cargo de santo da Igreja Católica Apostólica Romana.

Até algum tempo os anúncios de emprego insistiam em um pré-requisito: “Boa aparência”. Mas isso foi proibido por lei, porque o direito ao trabalho não pode ser privilégio de pessoas bonitas, ainda que inadequadas para o cargo.  

Fugi do assunto, mas já estou de volta. Juvenal olhou para outro e mais outro altar. Ali moravam santos e santas, como que emprestados diretamente do Paraíso para pregar em silêncio. Pregavam e, ao mesmo tempo, revelavam o quanto o garoto estava distante daquele clima beatífico.

Do nada, o padre Klaus saiu da sacristia, ele e seu conhecido sotaque Made in Germany. Sua batina, o colarinho branco contrastando com a cor preta, isso tudo dizia a Juvenal que ele pertence a mundos diferentes, inclusive nas vestimentas.

Quem podia se tornar padre? – o menino se perguntava. Eles eram como seres superiores, donos de uma santidade que ele jamais conseguiria ter, ainda que vivesse muitos séculos, mais ainda com aquelas roupas – essa era a impressão que aquele homem meio homem e meio Deus lhe passava. Seus olhos eram piedosos e a voz mansa. Um homem loiro, alto, de olhos azuis, tudo muito diferente dos olhos castanhos de Juvenal, pele morena, queimada pelo sol e corpo que jamais daria aos seus pais o Prêmio Nobel de Arquitetura e Design.

“Pois é, padres são pessoas especiais” – assim poderia ser traduzido seu sentimento e a sua certeza naquele momento.

Juvenal saiu daquele templo como que cambaleando. Não tinha vontade de voltar pra casa, se pudesse escolher. Se dependesse dele se alojaria pelos próximos 100 anos na casa paroquial, um dos dois únicos sobrados da cidade – o outro era do prefeito. Os dois poderes: o político e o religioso moravam muito bem, isso se podia constatar in loco. E trabalhavam em instalações privilegiadas, muito diferentes até mesmo das agências dos grandes bancos. O Excelentíssimo e o Reverendíssimo. Um excelente e outro digno de ser reverenciado. “Acima de mim, só eu mesmo”.

O pai do menino, o “Seu Zé”, homem sem título que o distinguisse, ao contrário, era apenas um despretensioso agricultor, que aos trancos e barrancos aprendera a “fazer” o nome – homens do campo sabem “fazer”, muito mais do que elaborar pensamentos complexos, às vezes em idiomas diferentes do dialeto da roça.

Juvenal voltou para casa. Ainda não sabia o que pensar. Apenas sentia, com profundidade, que existia vida, outra vida, muito diferente da sua, e igualmente inatingível, fora daí. E o seu mundo, iluminado por lamparinas cheias de pouca vontade e que além de tudo cheiravam a querosene, onde ele andava descalço, era seu e ninguém o informava de que isso não precisava ser eterno, tudo era tratado como sina ou destino. O céu era azul, bordado de estrelas com um brilho bem definido, sem cobrar ingresso.

Ao lado da cama dos seus pais havia uma imagem de São José feita de gesso nacional, quebrada pelo tempo, e um velho rosário, presente de sua avó paterna. Era o que tinham - um pequeno altar junto do qual duas pessoas exaustas pelo peso diário da terra, do arado ineficiente, dos cereais, dos cuidados com os animais, dentre outras coisas, se prostravam.

O pão nosso de cada dia era produzido ali mesmo, num pequeno pedaço de terra que seus pais consagravam com suas enxadas sujas de terra, dedicação e suor. Sem se dar conta e sem liturgia, a vida de todo santo dia era santificada pelo trabalho, às vezes misturado de chuva. Eles quase sabiam as palavras do Sinal da Cruz, num Português meio torto, mas se atrapalhavam na hora de colocar cada uma no seu lugar – “livrai-nos Deus do Nosso Senhor”. O Deus Pai sendo solicitado para livrá-los do Deus Filho, veja só.

Deus, no entanto, traduzia suas dificuldades cujo mérito o alegrava ainda mais, porque nisso empenhavam todos os seus esforços. Como no Evangelho, aos olhos de Cristo a única moeda que supriria algumas necessidades da pobre velhinha, depositada no Templo, valia muito mais do que grandes fortunas colocadas com arrogância, talvez para comprar a misericórdia divina.

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