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■ A cartilha sagrada

  • Foto do escritor: Rubens Marchioni
    Rubens Marchioni
  • 17 de ago. de 2022
  • 4 min de leitura

Na retomada da vida fora da Igreja, Wladimir foi entrevistado como candidato a uma vaga no Departamento de Comunicação de um sindicato patronal. Seus dirigentes assistiam, preocupados, à movimentação para as comemorações do Dia do Trabalho agendadas para o próximo mês.


Sem qualquer perspectiva de um trabalho remunerado no seio da Santa Madre Igreja, que não o contrataria a menos que ele fosse um expoente no campo da Teologia, Wladimir estava disponível para dominar a arte do beijo técnico. Amaria de um jeito convincente diante das câmeras, para manter o querido telespectador e a respeitável telespectadora presos à telinha, mas não arranharia em um milímetro a fidelidade à pessoa amada. No mais, ele acreditava em utopia, na utopia de um mundo mais justo e feliz. A crença era um combustível forte em sua vida, a partir da própria casa.


Num primeiro momento da conversa, sua forma de pensar e, sobretudo, de expressar o que ia pela cabeça, agradou o futuro empregador. A voz confiante e os gestos grandes, à moda Hélder Câmara, revelavam o empenho em acertar. Para ele, o melhor continuava sendo o melhor, como nos tempos de Igreja institucional. Aos 28 anos, era mestre nessa e em outras convicções.


Wladimir exibia um corpo magro e alto. Mantinha os cabelos sempre bem penteados. Seus óculos sem aros, a jaqueta modesta e o relógio de pulso social falavam de uma personalidade pouco afeita a modismos. Este figurino era completado por um par de sapatos pretos com sola de borracha. O calçado era adequado às calçadas da periferia onde ele e a esposa viviam numa casa exuberante. A construção ostentava um quarto e sala modestos. A cozinha, bem apertada, era pequena demais para três pessoas. O banheiro, pequeno, não tinha box, mas ainda conservava uma parte do piso. Tudo plantado de frente para o mar de terra que voava da rua sem asfalto em dias de vento forte.


Agnaldo, o entrevistador, expressou com clareza a sensação que experimentou de acerto. Mas, como cumpridor fiel da cartilha da instituição, cometeu um engano. Talvez por acreditar que a humanidade inteira seguia a risca os seus princípios, ele atentou apenas para o quesito habilidade do candidato no uso das palavras. Não procurou ao menos saber sobre seu passado e de onde vinha a experiência no terreno da Comunicação. Tivesse feito isso, evitaria o equívoco, se esse era o caso.

Ao ser contratado, acabava de se desenhar um paradoxo: o teólogo da libertação se tornava o profissional encarregado de transformar em mensagens escritas a ideologia defendida por um órgão que representava abertamente os interesses do patrão. Quem precisa trabalhar domina a arte de fechar os olhos, quando a sobrevivência sua e da família se impõe.


O que viria pela frente?


Não demorou muito para que Wladimir cometesse uma imprudência típica de principiante: sentindo-se bem avaliado por exercer sua função de redigir mensagens por vezes com intenção duvidosa, exigência do cargo, o novo redator se soltou um pouco mais e foi além de certo limite. Wladimir se permitiu o espaço para certa dose de espontaneidade. Relatou o fato de ter sido seminarista, talvez por acreditar que essa formação intelectual e humana o credenciava ainda mais para o cargo. E fez isso com um agravante: confessou ter pertencido a uma Arquidiocese tida como “subversiva”, comprometida radicalmente com a classe trabalhadora. O que a levava a ser vista com rejeição por empresários, por 94,7% dos políticos e por todas as forças que representavam o poder nas suas diferentes formas.


Wladimir sentiu-se à vontade para pensar e falar. E se deu muito mal. Esse comentário, naquela circunstância, não poderia dar certo. Sua fala estava no lugar errado, na hora idem. Mas o desejo de obter aprovação do sindicato e de pessoas ligadas às duas famílias o levou a esticar a corda para além da sua resistência.


O profissional disse o que pensou e ouviu o que não desejou. É assim quando não se tem habilidade suficiente para saber tudo, absolutamente tudo o que pode e o que não pode ser feito no ambiente profissional.


No final do dia, da sala onde se via um vaso de Narciso, falando de egoísmo, vaidade e formalidade, Agnaldo o convidou a ouvir a frase fatal: “Entra e fecha a porta”. Wladimir entrou num espaço ainda desconhecido, decorado com uma luminária fabricada nos anos 1940, painel de TV, videocassete, revisteiro e até um taco de basebol. Ali ele ficou sem chão e sem emprego. Fácil entender: para certo tipo de executivo, a liberdade é algo suportável apenas no regime democrático, onde ele decididamente não se encaixava.


Ora, não havia nada errado no fato de Wladimir ter convivido de maneira tão íntima com a instituição eclesial, relacionamento que deixou marcas na sua forma de pensar, sentir e agir. Mas nada disso estava certo para aquele sindicato patronal. A instituição se encontrava devidamente blindada contra qualquer coisa que não repetisse exatamente a sua cartilha sagrada. Mas não deixava de temer o risco de ter em seu quadro de funcionários um subversivo, que, em dado momento empreenderia um movimento de guerrilha entre seus muros, convocando colegas e o povo em geral para uma luta armada e sangrenta como nunca se viu no Planeta, quiçá no Universo Sideral.


A certeza de que a verdade nos libertará deixou Wladimir livre para buscar outros caminhos, muito mais interessantes e promissores. Em casa, junto da mulher, repetiu o gesto diário de desinfetar e lavar o que havia trazido da rua. Mas agora esse gesto era sacramental, um rito de purificação do que havia de negativo nessa experiência que ignorava preceitos como vida em abundância.


A situação era desafiadora. Mas ele insistiria em desenhar um novo cenário. Detesto repetir clichês, e não vou ceder dessa vez, mas a verdade é que do limão ele faria uma limonada.

 
 
 

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